Diante dos acontecimentos das últimas semanas envolvendo os povos indígenas,
o sociólogo
Ivo Lesbaupin levanta uma inquietante questão: "Qual a
diferença entre a política indigenista do atual governo e aquela da ditadura de
1964?".
O professor da
UFRJ e assessor dos movimentos sociais lembra que
os militares nos anos 1970 imbuídos de uma concepção desenvolvimentista –
Brasil Grande – passaram por cima dos povos indígenas que
ousaram resistir. “O índio não pode deter o desenvolvimento”, dizia em 1971 o
general do exército
Bandeira de
Mello, na época presidente da
FUNAI.
A confirmação da fala do general está vindo agora à tona com o caso do
extermínio de dois mil índios waimiri-atroari e de
fatos relatados no
Relatório
Figueiredo. Ambos os casos são amostras das atrocidades cometidas pelos
militares no período da ditadura contra os índios.
Passaram-se 50 anos do início da ditadura militar, porém, a concepção
desenvolvimentista que veem os índios como um estorvo, um empecilho e um
obstáculo permanece intacta. Como afirma
Roberto Liebgott do
Cimi-RS em entrevista exclusiva à revista
IHU On-Line desta semana
, “os conceitos
de entraves e obstáculos foram amplamente utilizados no período da ditadura
militar pelos governos autoritários, quando se pretendia abrir estradas ou
construir barragens em terras que habitavam comunidades e povos indígenas. O
argumento dos ditadores, era de que os interesses da nação não poderiam ser
atrapalhados pelos índios, por isso eles precisavam ser removidos".
"Fazendo um paralelo, diz
Liebgott, com os discursos
recentes de autoridades públicas, especialmente da ministra da Casa Civil,
Gleisi Hoffmann, constata-se que a concepção que se tem dos povos indígenas em
nosso país (em um governo 'democrático e popular') é o mesmo dos governos da
ditadura militar. Disse a nobre ministra: ‘Não podemos negar que há grupos que
usam os nomes dos índios e são apegados a crenças irrealistas, que levam a
contestar e tentar impedir obras essenciais ao desenvolvimento do país, como é o
caso da hidrelétrica de Belo Monte. O governo não pode concordar com propostas
irrealistas que ameaçam ferir a nossa soberania e comprometer o nosso
desenvolvimento’”
.
O dirigente do
Cimi lembra que “não raras vezes o
ex-presidente
Lula, em
discursos inflamados pela defesa das grandes obras, disse que os direitos dos
índios, quilombolas e ambientais eram penduricalhos. Essa é a concepção que o
governo brasileiro tem dos povos indígenas”.
Antes o governo ditatorial, os militares, os generais, majores e coronéis das
Forças Armadas como
Sebastião Curió que não titubeavam em afastar o “obstáculo”-
os povos indígenas – com o uso da
manu militari. Hoje, o
PT, o
PCdoB, o
PMDB e seus aliados. Antes, os generais
Costa e
Silva,
Médici, Geisel, o uso da Lei de Segurança
Nacional, as forças políticas em torno da
Arena – a direita. Hoje,
Dilma Rousseff, o
PT, ministros de Estado
progressistas – a esquerda.
A afirmação do general do exército em 1970 de que “o índio não pode deter o
desenvolvimento” é hoje reafirmada pelas lideranças de um governo que se
autodenomina democrático-popular, como destaca
Roberto Liebgott. Ainda
mais espantoso, entre os porta-vozes que insinuam que os índios são um
“obstáculo” muitos são de lideranças no interior do
PT que se posicionam à esquerda no debate
interno do Partido, como o ministro da justiça
José Eduardo Cardozo e o governador do Rio Grande do Sul
Tarso Genro ou ainda de ministros como
Gilberto Carvalho e
Gleisi Hoffmann, o primeiro ligado anos atrás aos
movimentos da Teologia da Libertação como a Pastoral Operária, e a segunda,
promessa de modernização do Partido dos Trabalhadores.
As forças autoritárias, retrógradas, conservadoras e portadoras da ideia de
que o índio tinha que ser “emancipado” da sua terra e assimilado pela sociedade
produtivista de ontem é reproduzida pelas forças políticas de hoje que se
afirmam progressistas. “A história parece estar se repetindo, o que está em
questão tanto na época da ditadura quanto hoje é a concepção de desenvolvimento
(...) Hidrelétricas, mineradoras, agronegócio, desenvolvimentismo,
neodesenvolvimentismo
versusdireitos dos povos indígenas:
qual a diferença entre a política indigenista do atual governo e aquela da
ditadura de 1964”? pergunta
Ivo Lesbaupin.
Diz ele: “Foi o governo Lula que ressuscitou um projeto do tempo da ditadura,
a usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu. “Este projeto, diz o
sociólogo, iniciado em 1975, foi interrompido em 1989, em razão da resistência
dos povos indígenas. O Banco Mundial, que financiaria a construção, desistiu da
obra. Somente se voltou a ouvir falar neste projeto quase vinte anos depois, no
primeiro mandato do governo Lula”.
Segundo
Lesbaupin,
o projeto foi remodelado e empurrado goela abaixo daqueles que resistiram a ele,
mesmo depois da promessa de que isso não aconteceria. Ivo Lesbaupin lembra que
“houve inúmeras tentativas de povos indígenas, de movimentos sociais, de setores
da Igreja católica, inclusive do bispo local,
D. Erwin Kräutler, de demover o governo deste
projeto”. De nada adiantou. O mesmo
modus operandi retorna agora com o projeto do
complexo hidrelétrico no Tapajós.
Repete-se o desrespeito aos direitos dos povos indígenas. O governo na sua
obsessão crescimentista, para usar um conceito surgido nos debates da
5ª Semana Social Brasileira, enquadra o
Ibama, a
Funai, e não ouve as graves
denúncias do Ministério Público Federal. Ainda mais, “rasga” reiteradamente
a
Convenção 169 da
Organização Internacional do
Trabalho (
OIT) que determina a
consulta prévia às populações tradicionais afetadas por empreendimentos em seus
territórios.
Os indígenas impactados de maneira definitiva pelos projetos de usinas
hidrelétricas na Amazônia nunca foram consultados previamente, da forma definida
pela Constituição brasileira e pela
Convenção 169. Por esse
motivo, o governo brasileiro
responde a três processos judiciais, movidos pelo
Ministério Público Federal no Pará e no Mato Grosso.