sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Chamavam-se Maria

Conheci Maria Bernardina no hospital. Custava a respirar, exalando lentamente, um atrás do outro, os seus 95 anos.
Poucos dias depois ligaram para que eu abençoasse o corpo dela, antes da despedida.
Chego e encontro somente três pessoas ao seu redor... poucas demais, pelos muitos anos em que amou e serviu!
Aproveito para escutar a história dessa mulher: foi casada aos 12 anos com um homem adulto, escolhido para ela pelos pais.
Máquina de sexo e filhos, Maria logo pegou sífilis.
Concebia e paria uma criança atrás da outra, mas por causa da doença elas nasciam deformes, com graves problemas, e morriam logo nos primeiros dias.
Por quinze vezes foi assim, até encontrar um médico que teve mais cuidado e competência; graças a Deus e a ele, os últimos cinco filhos sobreviveram.
Maria amava rezar o terço: acho que repassava as 'Ave-Maria' como as gotas de vida e de dor de seus vinte partos.
No mesmo dia, tarde à noite, mais uma ligação. Morreu Maria Luiza, é preciso que um padre venha para 'batizá-la' (para os pobres realmente a fé é o único sustento, mesmo se simples, popular, talvez ingênua...)
Alcançar a casa de Maria Luiza é difícil, no escuro da rua estreita e escorregadia, na periferia da cidade.
Algumas tábuas no chão tampam os buracos do quintal, um sofá arrumado às pressas fora de casa recebe com carinho as visitas de quem não couber dentro de casa.
Lá na porta muitos abraços... mas quanta tristeza quando, de repente, abrindo-se o espaço, dá para ver no meio do quarto silencioso a pequena cova cor de rosa...
Nove meses na barriga da mãe, tempo de uma longa espera em que se cultivam sonhos, projetos, expectativas.
Logo depois, o trauma de horas de hospital: a pequena parece não querer sair, os médicos demoram a fazer o cesariano.
Cada cirurgia custa tempo e incomoda, há muito percebemos essa resistência dos médicos: muitas mães ao nono mês preferem correr para o outro hospital, 70 Km mais longe. O perigo é que nossa maternidade, em lugar de ser o berço da vida, se torne uma usina de morte!
Às vezes imaginamos que os médicos se conformam, “pois os pobres não levantam a voz... e, no caso, têm como rapidamente fazer mais um filho”.
Chamavam-se Maria.
Maria, Maria
É um dom, uma certa magia
Uma força que nos alerta
Uma mulher que merece viver e amar
Como outra qualquer do planeta
Maria, Maria
É o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que ri quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta
Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria
Mas é preciso ter manha
É preciso ter graça
É preciso ter sonhos sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida.
(Milton Nascimento)
(pe. Dário - Açailândia MA)

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