Ao longo do ano de 2012 houve uma disputa significativa entre dois projetos opostos de ‘desenvolvimento’ para mais de cem comunidades de Pará e Maranhão.
Trata-se das comunidades que vivem no entorno da Estrada de Ferro Carajás, em concessão à Vale. A mineradora está querendo duplicar a ferrovia, para escoar mais rapidamente o minério da jazida mais rica do mundo, Carajás. A própria Vale reconhece que essa voracidade estará levando à exaustão a mina de Carajás até 2037, em menos de uma geração.
Movimentos sociais e comunitários que acompanham a vida dos povos quilombolas, indígenas e trabalhadores do campo defendem, ao contrário, uma alternativa que não precisa desse ritmo avassalador, com todos os seus impactos sócio-ambientais.
Uma Ação Civil Pública denunciou a ilegalidade do processo de duplicação dos trilhos, realizado às pressas e com várias irregularidades.
A Justiça Federal deu razão a esse clamor e suspendeu a duplicação dos trilhos. As obras permaneceram bloqueadas por 45 dias, até quando a Vale conseguiu um parecer do presidente do TRF, conferido em função de um interesse maior, de Estado, alegando o perigo de alterações à ordem econômica e social do país.
Quem define a ordem e os objetivos de um país? E qual é o papel do Estado, se não defender o interesse das categorias mais frágeis, já que os poderes econômicos as estão ameaçando?
Ao contrário, o Estado está cada vez mais facilitando empreendimentos e investimentos em atividades não renováveis, sobretudo a mineração, cuja participação na economia brasileira cresceu sem freios nos últimos dez anos. E o novo Plano Nacional de Mineração prevê investimentos de R$ 350 bilhões até 2030.
O atual projeto econômico e político de gestão dos recursos e territórios no Brasil parece fundado em conexões estritas entre uma pauta exportadora de matérias primas, fortes investimentos em grandes obras e geração de energia para uso industrial, delimitação progressiva dos direitos de autogestão das comunidades tradicionais e da agricultura familiar.
Tudo isso pode acontecer graças à flexibilização da normativa ambiental (a exemplo da redução de áreas de preservação para construção de hidrelétricas), da concessão de licenciamentos ambientais ilegais (como o caso de Carajás) e de questionamento a direitos adquiridos, como o recente Decreto 303 da AGU que impunha restrições aos direitos constitucionais dos povos indígenas vedando a ampliação das terras indígenas já demarcadas.
Num artigo muito lúcido em Le Monde Diplomatique, os pesquisadores Bruno Milanez e Julianna Malerba aprofundam as razões e contradições do boom da mineração no Brasil e América Latina.
“Um maior controle sobre os recursos naturais pelo Estado não tem sido capaz de alterar o peso das heranças patrimonialistas e excludentes sobre o controle dos recursos naturais e a distribuição desigual dos impactos da exploração desses recursos. Isso significa que, ao criar mecanismos que assegurem o aumento no ritmo de exploração mineral, o Estado, ainda que em nome da geração de divisas que viabilizem políticas de redução da pobreza e desigualdade social, impulsiona um processo de despossessão, muitas vezes autoritária e violenta, dos grupos sociais nos territórios”.
Esse processo, que se dá de forma parecida em outros países de nosso continente, vem sendo definido como “paradoxo latino-americano”: em nome da superação da pobreza, governos impulsionam atividades extrativas com fortes custos sociais e ambientais, exclusão e desigualdade e nenhuma perspectiva de futuro, vinculando ao contrário inteiros territórios e as populações locais a processos produtivos ligados à mineração, com perspectiva de exaustão em tempos muito breves.
Alguns países latino-americanos estão debatendo há tempo as alternativas possíveis, desenvolvendo modelos e propostas a partir do viés do chamado “pós-extrativismo”. Trata-se de uma nova interpretação econômica, pela qual se faz necessária uma transição progressiva: da exploração e exportação de commodities para incentivos a formas descentralizadas de economia local. Isso pode acontecer a partir do princípio de internalização dos custos sociais e ambientais dos produtos exportados, também a partir de um maior grau de tributação. Mas deve ser um processo consolidado em nível continental, e portanto a ser amadurecido a partir de profundos debates em cada país a respeito do destino da economia e do sentido da política.
Nesse sentido, a situação brasileira é particularmente preocupante. De fato, pelo que se refere às maiores escolhas políticas e econômicas, parece estar sendo vetado o debate público e a interação com a sociedade civil organizada.
Há tempo, por exemplo, um conjunto de organizações, movimentos sociais e pastorais da Igreja Católica reivindica o acesso à discussão da reforma do Marco Legal da Mineração, que está sendo preparado ‘na surdina’ por uma pequena equipe do Ministério de Minas e Energias, em constante interação com as empresas e com uma quase total exclusão do debate popular.
Uma campanha divulgada na metade do ano passado clamou pelo direito a debater o Marco Legal; uma representativa delegação dos movimentos acima referidos encontrou até o ministro Gilberto Carvalho, insistindo sobre o mesmo assunto. Semanas e meses passaram sem que houvesse novidades.
Esse isolamento dos movimentos sociais se repete no caso do debate sobre Belo Monte, na reivindicação de audiências públicas em todos os municípios que serão afetados pela duplicação de 900 Km de Estrada de Ferro Carajás, na denúncia de graves violações contra os povos indígenas, inclusive os projetos de mineração em suas terras.
A Igreja Católica destacou-se, recentemente, com denúncias lúcidas e corajosas. O regional Nordeste 5 da CNBB (Maranhão) desde o início de 2011 está alertando a respeito das consequências nefastas dos grandes projetos de mineração e siderurgia ao longo do corredor de Carajás, em Pará e Maranhão. O regional Norte 2 (Pará e Amapá) publicou em outubro 2012 uma nota de repúdio contra as agressões sócio-ambientais, denunciando as ilegalidades do licenciamento da usina hidroelétrica de Tapajós e clamando: “não admitimos sermos tratados como entraves ao crescimento econômico”.
A CPT, em seus relatórios anuais sobre conflitos no campo, está destacando a agressividade crescente dos processos de mineração sobre populações e territórios. O debate rumo à Semana Social Brasileira será significativamente pautado por esses assuntos também.
A nível latino-americano e mundial, cresce a sensibilidade e preocupação da Igreja a respeito dos impactos da mineração. Em 2011, um seminário internacional promovido pelo CELAM no Peru debateu sobre a missão da Igreja frente à problemática dos recursos naturais não renováveis e das indústrias extrativas na América Latina. Entidades como Misereor e CIDSE têm também produzido estudos aprofundados sobre os impactos da mineração em nosso continente.
É cada vez mais urgente alavancar um debate em nosso país e continente a respeito do modelo econômico promovido pelos Estados, sobre o papel da mineração e a oportunidade de transições progressivas para novos modelos pós-extrativistas, que garantam os interesses da maioria da população, das futuras gerações e do meio ambiente que nos hospeda e do qual não somos donos.
Pe. Dário Bossi, missionário Comboniano, membro da rede Justiça nos Trilhos e da Rede Brasileira de Justiça
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